Melinda Gates: vendo os vieses de gênero

O Natal na vila Dimi, uma comunidade agrícola remota no Malauí, todos se reuniram para comemorar, exceto uma mulher, Patrícia, que estava em um campo a uma milha de distância, ajoelhada na terra úmida em seu terreno de meio hectare, plantando amendoim.

Enquanto o resto de sua vila compartilhava a comida e fazia festa, Patrícia trabalhava com rigoroso cuidado, certificando-se de que suas sementes se alinhassem em fileiras perfeitas — 75 centímetros entre cada linha, 10 centímetros entre cada planta.

Seis meses depois, visitei Patrícia no terreno de sua fazenda e lhe disse: “Me contaram como você passou o dia de Natal!” Ela riu e disse: “Foi quando as chuvas chegaram!” Ela sabia que sua colheita seria melhor se plantasse quando o chão ainda estava úmido, e foi o que ela fez. Você pensaria que alguém com a dedicação de Patrícia seria extremamente bem-sucedida, mas ela passava dificuldades há anos. Apesar de seu trabalho meticuloso, até o básico estava fora do alcance para ela e sua família. Ela não tinha dinheiro para as taxas de matrícula de seus filhos, o tipo de investimento que pode ajudar a quebrar o ciclo da pobreza, ou mesmo dinheiro para comprar um conjunto de panelas, o que poderia facilitar sua vida.

Os agricultores precisam de cinco coisas para ter sucesso: boas terras, boas sementes, material agrícola, tempo e know-how. Havia barreiras entre Patrícia e todas essas coisas, simplesmente porque ela era uma mulher.

Por um lado, e isso é comum na África subsaariana, a tradição do Malawi na maioria das comunidades determina que as mulheres não podem herdar terras (As leis recentemente aprovadas no Malawi concedem às mulheres direitos iguais de propriedade, mas os costumes são mais lentos em mudar). Portanto, Patrícia não possuía sua própria terra. Ela a alugá-la de outro. Era uma despesa que a impedia de investir na terra para torná-la mais produtiva.

Além disso, como Patrícia é uma mulher, ela não tem voz nos gastos da família. Durante anos, o marido decidiu o que a família deveria gastar — e se isso não incluísse suprimentos agrícolas para Patrícia, não havia nada que ela pudesse fazer.

O marido também decidia como Patrícia passava o tempo. Ela fez uma imitação engraçada dele lhe dando ordens: “Vá e faça isso, vá e faça isso, vá e faça isso, vá e faça isso o tempo todo!” Patrícia passava os dias cortando lenha, buscando água, cozinhando refeições, limpando os pratos e cuidando das crianças. Isso lhe dá menos tempo para gastar em suas colheitas ou para levar seus produtos ao mercado para lhe garantir o melhor preço. E se ela quisesse contratar ajuda, os trabalhadores não trabalhariam tanto por ela como por um homem. Homens no Malauí não gostam de receber ordens de mulheres.

Surpreendentemente, até as sementes que Patrícia estava plantando foram afetadas por seu sexo. As organizações de desenvolvimento trabalham há muito tempo com os agricultores para produzir sementes que produzem mais ou atraem menos pragas. Por décadas, porém, quando esses grupos iam consultar os líderes da comunidade agrícola, eles conversavam apenas com homens, e os homens se concentravam em cultivar apenas as colheitas que eram capazes de vender. Quase ninguém estava criando sementes para agricultoras como Patrícia, que também se concentram em alimentar suas famílias e por isso costumam cultivar plantas mais nutritivas, como grão de bico e vegetais.

Governos e organizações de desenvolvimento oferecem sessões frequentes de treinamento para agricultores. Mas as mulheres têm menos liberdade para sair de casa para participar dessas sessões ou até para conversar com os instrutores, que tendem a ser homens. Quando as organizações tentaram usar a tecnologia para espalhar informações — enviando dicas por mensagem de texto ou pelo rádio — descobriram que os homens controlavam essa tecnologia. Se as famílias tinham um telefone celular, os homens o carregavam. Quando as famílias ouviam o rádio, os homens estavam controlando qual rádio era sintonizada.

Quando você soma tudo, começa a entender como uma agricultora inteligente e trabalhadora como Patrícia nunca foi capaz de progredir. Havia uma barreira atrás da outra bloqueando seu caminho, porque ela era uma mulher.

Texto de Melinda Gates, retirado e do livro recém lançado “The Moment of Lift”.

Tradução: Fernando Moreno.

A importância das mulheres na luta contra o aquecimento global

"Aprimorar os direitos e bem-estar de mulheres e garotas pode melhorar o futuro da vida nesse planeta."

Na doebem, estudamos diversas soluções que possuem alta efetividade na resolução de problemas globais. Muitas vezes, tais soluções podem vir de maneiras pouco intuitivas, e o objetivo dessa série de dois posts é mostrar um exemplo disso.

O texto abaixo é uma tradução livre de um excerto do livro Drawdown — The most comprehensive plan ever proposed to reverse global warming — Edited by Paul Hawken (o plano mais abrangente proposto para reverter o aquecimento global).

O livro compila uma lista das 100 soluções mais eficazes no combate ao aquecimento global, estimando seus custos, redução de emissões e também o retorno econômico no longo prazo. Clique aqui para acessar a lista completa das soluções.

Mulheres e Meninas

Essa seção é enganosamente pequena no livro. As soluções aqui listadas focam na maior parte da humanidade, os 51% de mulheres. Nós as destacamos pois a mudança climática não é neutra quanto ao gênero. Por conta das desigualdades existentes, mulheres e garotas são desproporcionalmente mais vulneráveis aos impactos do aquecimento global, desde doenças até os desastres naturais. Ao mesmo tempo, mulheres e garotas são figuras-chave para combater o aquecimento global com sucesso — e para a resiliência geral da humanidade. Como você poderá observar, a exclusão e marginalização conforme o gênero causam dano a todos, enquanto que a equidade é boa para todos. Essas soluções demonstram que aprimorar os direitos e bem-estar de mulheres e garotas pode melhorar o futuro da vida nesse planeta.

Tabela resumo do Impacto Esperado

Nota do Tradutor: a tabela acima faz a estimativa de impacto apenas das soluções destacadas nessa tradução. Para uma lista completa das soluções voltadas a reversão do aquecimento global, ranqueadas, acesse aqui.

Planejamento Familiar

Mulheres poderem planejar o tamanho de suas famílias, o intervalo entre uma gravidez e outra, e terem filhos por escolha e não por sorte são questões de autonomia e dignidade. Cerca de 225 milhões de mulheres em países de baixa renda dizem que gostariam de poder escolher quando ficarem grávidas mas não têm o acesso necessário a contraceptivos — resultando em cerca de 74 milhões de gravidezes indesejadas por ano. Esse problema também persiste em alguns países de primeiro mundo, incluindo os Estados Unidos, onde 45% das gravidezes são indesejadas. Garantir o direito fundamental ao planejamento familiar, voluntário e de alta-qualidade teria um impacto positivo poderoso na saúde, bem-estar e expectativa de vida tanto de mulheres quanto de crianças ao redor do mundo. Os benefícios para o desenvolvimento social e econômico são inumeráveis e, por si só, mereceriam ação rápida e continuada. O planejamento familiar também pode ter efeitos em cascata na mitigação das emissões de efeito estufa.

No começo dos anos 70, Paul Ehrlich e John Holdren desenvolveram a hoje famosa equação conhecida como IPAT: Impacto = População x Afluência x Tecnologia. De modo simplificado, ela afirma que o impacto que os seres humanos têm no meio ambiente é uma função do número de habitantes, do seu nível de consumo e do tipo de tecnologia usada. Muito do trabalho visando ao aquecimento global tem focado na parte da equação relativa à tecnologia, abandonando progressivamente os combustíveis fósseis. Outros focaram na afluência, objetivando reduzir o apetite dos consumidores por coisas, particularmente nos países ricos. Combater o terceiro fator, população, continua sendo questão controversa, apesar da concordância generalizada de que mais pessoas colocam mais tensão no planeta, ainda que de maneira desigual. Cada pessoa consome recursos e gera emissões durante toda sua vida; esses impactos são muito maiores para alguém nos Estados Unidos do que para alguém no Uzbequistão ou Uganda. A emissão de carbono por pessoa (conhecida como “pegada de carbono” — carbon footprint) é um tópico comum no meio ambientalista. Porém falar sobre quantos “pés” estão deixando de “fazer uma trilha” não é tópico comum, em grande parte por preocupações de que relacionar o planejamento familiar à saúde do meio ambiente possa ser inerentemente coercitivo ou cruel — Malthusiano em seu pior sentido. Contudo, quando planejamento familiar foca no fornecimento de assistência médica e no atendimento às necessidades explícitas das mulheres, empoderar, equalizar e fornecer bem-estar são os objetivos; benefícios ao planeta são apenas um efeito colateral.

Desafios para a expansão do acesso ao planejamento familiar vão desde o fornecimento básico de contraceptivos culturalmente apropriados e com preços acessíveis até a educação quanto ao sexo e a reprodução; desde hospitais muito distantes até a atitude hostil de certos prestadores de serviços médicos; das normas religiosas e sociais até a oposição dos parceiros ao uso de controle de natalidade. Atualmente o mundo carece de US$ 5,3 bilhões em fundos para o fornecimento de acesso à saúde reprodutiva que as mulheres afirmam desejar.

As histórias de sucesso no planejamento familiar, contudo, são impressionantes. O Irã iniciou um programa no começo dos anos 90 que é promovido como um dos de maior sucesso na história. Completamente voluntário, ele envolveu os líderes religiosos, educou o público e forneceu acesso gratuito a contraceptivos. Isso resultou numa queda pela metade das taxas de fertilidade em apenas uma década. Em Bangladesh, a taxa média de natalidade caiu de seis crianças em 1980 para duas hoje, por conta de uma abordagem porta-a-porta, pioneira do hospital Matlab, espalhada por todo o país: trabalhadoras de saúde fornecendo cuidados básicos para as mulheres e crianças onde vivem. Essas e outras histórias de sucesso mostram que apenas o fornecimento de contraceptivos é raramente suficiente. O planejamento familiar requer reforço social, por exemplo através de programas de rádio e novelas de televisão que agora são usadas em muitos lugares para alterar a percepção do que é “normal” e “correto”.

Depois de se calar sobre o tópico do planejamento familiar por mais de 25 anos o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) incluiu o acesso a serviços de saúde reprodutiva em seu relatório de síntese de 2014 e apontou o crescimento populacional como fator importante na concentração de gases do efeito estufa. Crescente evidência sugere que o planejamento familiar tem o benefício adicional de construir resiliência — ajudando comunidades e países a melhor lidar e se adaptar às inevitáveis mudanças trazidas pelo aquecimento global. Isso também tem implicações para as mulheres e crianças, que, por conta das desigualdades existentes, sofrem desproporcionalmente quando impactadas, de doenças à desastres naturais.

Contudo, esse tópico ainda é tabu em muitos países e instituições, cercado pela crença persistente de que levantar a questão sobre a população, ou abordagens que visam a reduzi-la, é inerentemente draconiano e uma afronta ao valor da vida humana. Pode ser o oposto num planeta cada vez mais aquecido e lotado: para reverenciar a vida humana é necessário garantir uma casa viável e vibrante para todos. Honrar a dignidade de mulheres e crianças por meio do planejamento familiar não diz respeito a governos centralizados forçando uma queda da taxa de natalidade — ou para cima, por meio de políticas natalistas. Nem é sobre organizações ou ativistas de países ricos, onde as emissões são as maiores, dizendo às pessoas em outros lugares para pararem de ter filhos. É mais essencialmente sobre liberdade e oportunidade para as mulheres e o reconhecimento de um direito humano básico. Atualmente, o planejamento familiar recebe apenas 1% de toda verba da ajuda externa internacional. Esse número poderia dobrar, com o objetivo de que os países de baixa renda coloquem uma igual contraparte, uma atitude moral que também teria muito significado para o planeta.

Análise de Impacto

O aumento na adoção de serviços de saúde reprodutiva e planejamento familiar é um componente essencial para alcançar a projeção populacional de 9,7 bilhões de pessoas em 2050, de acordo com a média estimada pelas Nações Unidas em 2015. Se os investimentos em planejamento familiar, particularmente em países de baixa renda, não se materializarem, a população global poderá se aproximar da projeção superior, acrescentando 1 bilhão a mais de pessoas no planeta. Nós modelamos o impacto dessa solução baseados na diferença entre quanta energia, espaço construtivo, comida, lixo e transporte seriam usados, comparado àquele da projeção de 9,7 bilhões. O resultado seria a redução de emissões em 123 gigatoneladas de dióxido de carbono, a um custo médio anual de US$10,77 por usuário em países de baixa renda. Como a educação de garotas (próximo tópico) tem um importante impacto no uso de planejamento familiar, nós alocamos 50% do potencial total de redução de emissões para cada solução — 59,6 gigatoneladas para cada.

Este post foi traduzido do livro "Drawdown — The most comprehensive plan ever proposed to reverse global warming" por Fernando Moreno e revisado por Guilherme Samora e Elisa Mansur.